21 de fevereiro de 2013

VIAJANTE CHIC




Esse exemplar foi presente de um companheiro de viagem tarimbado, e mesmo após suas negativas insisto que a intenção do mimo foi temperar a espontaneidade da Viajante Chic que vive em mim. Afora o amargo da dúvida, e a brincadeira, fiquei com água na boca ao receber o livro de Glória Kalil, consultora de moda, beleza e comportamento, elementos indispensáveis à boa mesa.

De entrada me pareceu uma receita para degustadores experientes de céus, mares, estradas e trilhos, mas durante a leitura provei um roteiro que, embora nutritivo, traz informações triviais, incapazes de alimentar apetites severos (a semelhança com uma barrinha de cereal não é mera coincidência).

Mesmo sem um sabor surpreendente o livro merece ser explorado, ainda mais pelos iniciantes, uma vez que está recheado com dicas e exemplos que vão do planejamento da viagem ao retorno para o lar, tudo bem detalhado em um texto espirituoso e elegante.

No menu viagens de trabalho e lazer, com ou sem acompanhamentos, como familiares, amigos,  casais, crianças ou yourself.  Providências de documentação e vacinas, organização da mala considerando ocasiões e condições climáticas, inspiração para bons comportamentos em diferentes ambientes e situações também estão no cardápio. De sobremesa as orelhas do livro, que recortadas transformam-se em checklist de toillete, bagagem e agências.

Honesto, sem frescura e divertido, assim como a autora, Viajante Chic garante trechos com boas risadas, principalmente os que comparam os serviços oferecidos para as diferentes classes estabelecidas pelas empresas de viagem.

“PRIMEIRA CLASSE – O grande diferencial é (...).
CLASSE EXECUTIVA – A diferença em relação à classe turística está (...).
CLASSE TURÍSTICA OU ECONÔMICA – O principal problema é (...)”. – Pág. 100

Vai fazer as malas? Reserve um espaço para o livro e para o bom senso, pois “chic mesmo é ser civilizado, já que não dá para parecer elegante se nossas atitudes atrapalham a viagem dos outros”.  


Item importante: fones de ouvido. Sempre! Pra tocar?
Viva La Vida, Coldplay. Embala qualquer viagem.


19 de fevereiro de 2013

QUARTO



Jack é um simpático garotinho que acabou de completar 5 anos, ganhando da Mãe  um desenho feito por ela enquanto ele dormia no Quarto. Além de dormirem, ele e a Mãe fazem muitas coisas no Quarto. Na verdade, lá eles fazem tudo, pois é onde vivem. Às vezes Jack passa um tempo no Guada-Roupa, sempre que o velho Nick visita a Mãe, ficando quietinho até a Cama parar de ranger.

Diferente da Mãe que veio do Lá Fora, Jack nasceu e cresceu no Quarto, seu universo de brincadeiras, desenhos, aprendizados, e, fundamentalmente, de amor. O amor que fez a Mãe transformar aquele pequeno espaço em um mundo inteirinho para dois, mas que agora ficou bem apertado, apertado o suficiente para que saiam de lá.

Narrado na doce e pura voz de Jack, esta obra saborosa de Emma Donoghue é uma experiência literária assustadoramente real, exprimindo com inocência impressões de uma vida originada no isolamento. Os diálogos estabelecidos entre mãe e filho são de uma ingenuidade comovente, o que torna o contexto ainda mais perverso.

 “Ouvir” Jack falar de sua mãe é perturbador, pois a ternura da relação por ela conduzida em circunstâncias tão devastadoras desnudam nossa visão para os horrores indigestos do cotidiano, horrores para os quais fechamos os olhos na expectativa de que simplesmente desapareçam de nossas mesas.

“A mãe se levantou pra fazer xixi, mas sem falar, com o rosto todo vazio.” – Pág. 75

Os elementos usados pela autora na composição deste prato perdem sua essência acre através do discurso de Jack, que parece estar ao nosso lado durante toda a leitura, observando nossas reações e dizendo “nem vem, neném”.

Minha degustação do texto foi angustiante, e por todas as páginas quis proporcionar para mãe e filho uma bela refeição ao ar livre. Também desejei para eles as mais sublimes melodias, mas nada seria tão especial quanto o som de pássaros na liberdade de um céu azul.

Experimente o memorável sabor do Quarto

15 de fevereiro de 2013

O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA




Ao selecionar ingredientes como uma menina de tranças, um jovem poeta amante de música, um médico “bom partido”, cartas secretas e paixão Gabriel García Márquez poderia ter preparado um belo melodrama, mas o que ele serviu foi um banquete de sentimentos que satisfaz paladares exigentes.

Considerado seu romance mais notável, O Amor nos Tempos do Cólera conta a historia do triangulo amoroso composto por Fermina Daza, Florentino Ariza e Juvenal Urbino,  personagens marcantes de uma narrativa que decorre cinquenta e três anos, quatro meses e onze dias. Ambientado no Caribe do Século XIX, tem como pano de fundo o Cólera, a Guerra Civil e outras questões sociais, apresentadas de forma intensa e emocionante.

Baseada na vida de seus pais, a obra de Márquez traz questões diversas acerca de relacionamentos estabelecidos em uma sociedade marcada por convenções e preconceitos, salientando nuances dos arroubos juvenis à serenidade da velhice, alcançando núcleos e personagens distintos, não se limitando ao trio.

Redigido com sutileza, ingênua sensualidade e humor requintado, o texto é salpicado com detalhes que temperaram de forma envolvente, resgatando sentimentos já recolhidos, conferindo-lhes novos cheiros e gostos, permitindo que avaliemos os limites que infligimos às próprias emoções.

“Tinham ficado para trás os acasos deliciosos dela entrando enquanto ele tomava banho, e apesar das discussões, das berinjelas venenosas, e apesar das irmãs dementes e da mãe que as pariu, ele tinha ainda bastante amor para pedir a ela que o ensaboasse. Ela começava a fazê-lo com as migalhas de amor que ainda sobrava da Europa, e os dois iam se deixando trair pelas lembranças (...).” – Pág. 259

Reserve a melhor poltrona, programe A Morte e a Donzela de Schubert em um volume agradável para harmonizar com Bruschettas de Berinjela e deleite-se: sabor, dramaticidade e elegância na medida desta história de amores, sabores e musicalidade.

7 de fevereiro de 2013

MEMÓRIA DE MINHAS PUTAS TRISTES




"No ano de meus noventa anos quis me dar de presente uma noite de amor louco com uma adolescente virgem. (...) Nunca sucumbi a esta nem a nenhuma de suas muitas tentações obscenas, mas ela não acreditava na pureza de meus princípios. Também a moral é uma questão de tempo, dizia (...)." - Pág. 7

Com este aperitivo Gabriel Garcia Márquez convida-nos a degustar Memória de Minhas Putas Tristes, uma das obras mais belas que já li, não sem antes julgá-la, precoce e estupidamente, clichê.

Para além da cama ou outro elemento sugerido pelo título, o livro é uma doce poesia sobre o amor, o envelhecer e a solidão, ingredientes que temperam o prato de todos nós.  Seu texto gracioso e inteligente suaviza o contexto indigesto, ao mesmo tempo em que ressalta o sabor da vida, suas virtudes e possibilidades.

"É que estou ficando velho, disse a ela. Já ficamos, suspirou ela. Acontece que a gente não sente por dentro, mas de fora todo mundo vê." - Pág. 109

O protagonista centenário, cronista no jornal de domingo e professor de gramática, surpreende pela elegância e intensidade com que nos serve suas emoções e desassossegos, descobrindo que morrer de amor significa bem mais que uma licença poética. Talvez pelo ridículo ao qual o amor nos expõe, passou a vida relacionando-se com “mulheres descartáveis", percebendo o sentimento e sua humanidade ao pousar os olhos em Delgadina, a ninfeta adormecida, seu presente nu. 

"Foi algo novo pra mim. Ignorava as manhas da sedução e sempre tinha escolhido ao acaso as noivas de uma noite, mais pelo preço que pelos encantos, e fazíamos amores sem amor (...). Naquela noite descobri o prazer inverossímil de contemplar, sem as angustias do desejo (...)." - Pág. 35

O gosto desse primor de Márquez pode ser encontrado em uma Oblea com Doce de Amora, o feminino de amor. Delicado, agridoce e saborosamente afetuoso.

Seu ritmo compreendido em Solamente Una Vez, na voz de Augustín Lara, a predileta do protagonista, pois há quem diga que o amor acontece somente uma vez.